quinta-feira, 13 de junho de 2019

PM deitado

Minhas inacuradas habilidades de motorista
sempre me fizeram temer pelos fundos do carro
a passagem sobre um quebra-molas.


Mas então descobri um estranho prazer
em rolar sobre os ditos cujos
com as rodas sujas do veículo vermelho
que eu manejava em la Havana.


E isso simplesmente por saber que lá
quebra-molas se chama
policía acostado.


(Apesar deste texto já estar terminado,
é preciso dizer ainda
que em minha imaginação
o tal policía acostado
não leva farda cubana
e, sim, o uniforme cinza de pesadelo,
a arma o gás o cassete o grito o cuspe o chute
da PM carioca)

Mãe

Na hora da convocatória:
Manulena, Helenuela
Menines, crionças, meninonças
Tá na hora da boia do banho do dever
botar o pijama dormir
Aí vem a enrolação
mais um minutinho
agora não
só um pouquinho
não é justo
não

A mercadoria

Bloco anticapitalista no 1º de maio de 2016 em Genebra
















O que faço não importa.
Alguém pensa por mim, me diz o que fazer.
E eu trabalho.
Ponho em movimento a energia potencial
do feijão que comprava fiado
e que hoje pago no cheque especial.

E um dia depois do outro eu sigo
esperando as horas passarem,
decidindo como encher
o tempo que não me pertence.
Posso ser eficiente
e carregar o piano nas costas,
ou posso ser displicente
e roubar minutos,
buscando ajustar as contas
entre o valor da paga e o do produto.

Quando chega o fim de semana
é aquela alegria partida.
Dois dias para fazer o que não fiz,
compras, faxina, pagamentos.
Dois dias para ser feliz,
ócio, leitura, amigos.
E como nada escapa à contradição,
nesse mundo cretino até sorrir pode virar obrigação.

No começo do mês, o suor entra na conta.
Vem carcomido e travestido de dinheiro.
Por trás do seu brilho especular,
onde se reflete tudo o que devo comprar,
vejo os traços dos outros que, assim como eu,
levam a vida a aguentar.

E então, sim, posso sorrir
pois aí também está a maldita contradição,
por trás do trabalho forçado, mandado,
a cooperação.
Ao patrão explorador não devo nada,
a não ser minha miséria.
Quem me dá o que comer,
onde morar e o que vestir não é ele,
somos nós.

Gente


Às vezes eu penso na terceira pessoa, como a gente ou como um sujeito indeterminado. O despertador toca, tem que acordar, tem que acordar a criatura cujo sono resiste ao despertador do celular, tem que tomar café da manhã e fazer a lista mental das tarefas do dia. Na hora de me vestir até posso ter a impressão de que estou fazendo escolhas, mas me visto em função do que é adequado para cada atividade. Olho a boina verde peluda empoeirada na prateleira de cima e para o colar de havaiana jogado no quarto das crianças, que combinam, mas não ouso vesti-los para ir trabalhar. A boina eu até consigo usar se não me importo de chamar um pouco de atenção, mas o colar de havaianas tipo só no carnaval.
Eu acho que a gente percebe que a gente é bem pouco eu. Acho que a primeira vez que eu pensei nisso eu tinha 12 anos. Tentei explicar pra uma amiga minha o que eu chamei de “teoria do eu”, mas não consegui. Alguns anos depois, algumas aulas de história me ajudaram a organizar essa ideia-sensação da pequenez do nosso eu. Finalmente, com o passar dos anos, a ideia ganhou concretude e pôde ultrapassar o estágio de ideia (mandei um Hegel aí). O meu eu que se formou ao longo dos anos, e que não estava pronto antes da experiência vivida, é mesmo bem pequenino. E olha que eu nem estou trabalhando pra ninguém.
Uma parada que é muito doida é que mesmo quando eu tô sendo a gente, eu continuo sendo eu, especialmente quando eu consigo ter consciência de que eu só sou eu naquele a gente. Me faz pensar que a gente podemos ser agente.